segunda-feira, 19 de outubro de 2015

10. Amei mais de mil de você



Toda vez que você viaja para o passado, o seu corpo morre no tempo presente para sua consciência viajar e se infiltrar num clone temporal seu.

Eu sempre fui apaixonado por Gabriela, mas nunca tive coragem de falar com ela por medo de fazer algo de errado e perdê-la para sempre. Assim, criei uma máquina do tempo. Falei com ela e perguntei qual era o seu lugar favorito, voltei no tempo e a levei nesse lugar no primeiro encontro, foi assim que a conquistei.

Dei os melhores presentes de aniversário, a dei o casamento dos sonhos, descobri o diagnóstico de câncer com antecedência de sua mãe e consegui tratamento a tempo de salvar sua vida, dei a viagem dos sonhos logo após que ela foi promovida. Sempre soube as escolhas certas para subi na vida e ter uma vida de luxo - mas tudo sempre foi uma mentira cheia de dor e sofrimento.

Um dia soube das consequências da viagem do tempo e parei para pensar o que as Gabrielas que deixei para trás sofreram. Morri nos aniversários, morri dias antes do casamento, morri dias antes de sua mãe morrer de câncer, morri quando ela foi promovida, morri mais de mil vezes para mil Gabrielas diferentes.

Arrependido, deixei um presente e uma carta para ela e fugi para o meu próprio limbo. Na carta eu falava de tudo que fiz e tudo que perdi tentando ser o marido perfeito, todo meu arrependimento. Na carta pedi para que ela não abrisse a caixa sem antes imaginar o que havia dentro. Uma caixa fechada possui várias realidades existindo ao mesmo tempo, a partir do momento que você não sabe o que há dentro dela, tudo pode existir dentro dela. O que ela imaginasse seria a essência do que ela achava de mim.

"Imaginei que havia nada dentro da caixa, não que você seja nada para mim, mas você não é o Felipe que quis conhecer. Se o perfeito não é real, você é utópico. Uma pessoa é projetada através de seus defeitos e era nisso que quis me apaixonar, no que me apaixonei em você? Obrigada pela escolha de voltar no tempo, se isso faço, é para destruir essa máquina e fazer com que uma Gabriela conheça VOCÊ com toda vulnerabilidade. Por essa escolha madura, você se torna sim o melhor marido do mundo."

Sorri. Pois ela achou uma maneira de depois voltar para mim.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

9. Declínio da falocracia

Imagem de Ham Piglet


15 de Outubro de (não sei mais que ano é esse): 20h31
O mundo acabou, tudo virou um extenso deserto de desespero, solidão e miséria. Me pergunto quais foram os meus feitos e sucessos, o que eu fiz? Passei a minha vida no meu quadrado, vivendo com dinheiro fácil, sexo, drogas, na luxuosa vida de ser excluída da sociedade. É engraçado como os brancos, héteros de olhos azuis da grande elite eram o que pagavam mais pelos meus serviços. Mais engraçado ainda é o fato de que a sedução do meu corpo os enganavam de quem eu realmente era.

15 de Outubro de (não importa que ano é esse): 20h50
Estou numa cabana. Espero pela chegada dos saqueadores, eles estão vindo para terminar de roubar todos os meus pertences: minha vida, minha resiliência e minha coragem. Meu pai não me entendia quando eu era criança, eu não era o menino dos sonhos dele, apenas tinha corpo de um. Foram cinco anos de trabalho para conseguir minha cirurgia e ser quem realmente nasci para ser, porém, a partir desse dia, perdi toda minha utilidade no patriarcado. As mulheres sofriam com o machismo, eu sofri de esquecimento, vítima da vida marginal.

15 de Outubro de 0001: 22h22
Os homens chegaram. Estou escondida no armário. Revirando a minha cabana para puxar o gatilho na minha cabeça. Não, não me arrependo das minhas escolhas, não me arrependo de ter sido corpo estranho no organismo da falocracia. Ainda bem que eu não era importante para esse tipo de sistema. Não preciso de homem pra ser feliz, só precisei do dinheiro deles. Lutei e vivi ao máximo para ter a vida que sempre quis no âmbito da vida dos renegados e vivi bem e cá estou. Vivi meu apocalipse antes mesmo d'eu ter meu gênese e agora trilho no meu êxodo.

Bang! Bang! Bang!

Hoje, não preciso dos homens, nem de seu dinheiro de sangue, roubo o que eles roubaram de mim. Minha dignidade e minha honra. Roubo o que lhes dão a força, a masculinidade. Adeus, falocracia! Agora, anatomicamente, homens, estamos iguais.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

8. Pedra que não rola cria limo

Imagem de Ankitmaster

Todo dia está você a cantar. A brisa vem, toca no seu corpo e emite o doce som que te faz brilhar. Não sei explicar! É como duas estrelas de nêutron a colidir, uma explosão de emoções que faz meu coração acelerar. É como se eu fosse o lobo, você a lua, enamorado por ti, vou ao pico mais alto para uivar. Todo dia está você, toda perfeita, a me encantar.

Com todo o meu esforço, faço o melhor para aproximar. Meu corpo pesado não deixa, me desespero e começo a lastimar. Que destino cruel todo dia eu te ver e não poder de tocar, todo dia te ouvir e não poder, uma serenata, cantar. Sou apenas uma pedra no deserto e você a mais bela miragem a me hipnotizar. Ainda não sei se você é real ou se estou a sonhar.

Um escorpião se aproximou e começou a desembuchar: "Pedra, pedra. Se você não for primeiro. O primeiro vai chegar. Pra que serve uma pedra, se pra nada ela servirá?" Suas palavras eram facas, ferido, comecei a chorar. Quem sou eu? Um inútil. Quem sou eu? Inapto a amar.

Logo a águia veio, mas veio para me animar. "Pedra que não rola cria limo. Polido, plante uma semente no seu coração e floresça, vai até o limite, vai até onde o seu coração mandar. Quando chegar, role, e não pare de avançar. Pra que serve uma pedra se não na trilha de alguém ele também trilhar."

Levantei do meu banco, e comecei a andar. Perguntei seu nome e ela respondeu: "Silvia". E esse nome, na minha mente, começou a ecoar. "Me chamo Fernando, me desculpa, não parava de te olhar." Ela me perguntou o por quê e respondi: "Porque se Sol fosse tu, eu seria o mar. Todo dia vejo você refletir e toda noite me pego a te esperar e me pergunto se ela irá voltar. Todo dia você vem no mesmo lugar que eu, compra o mesmo sorvete que eu gosto também de me deliciar. Deixa eu comprar teu sorvete, se uma conversa você puder me dar."

No caminho dela, a vida me fez rolar. Pedra que não rola cria limo, então sempre rolarei até te encontrar. Amei, amo, amarei e você me amará?

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

7. Penúria




Pintura de Kelly Hill

Na janela do meu quarto, cantava o sabiá. Eu queria tentar acompanhar, mas eu não sabia assobiar. O canto era lindo, a melodia contagiante e com o tempo, seu cantarolar se tornou mais precioso que o diamante. Mas ele morava escondido, dentro da mangueira, eu o ofereceria um sorriso se eu o encontrasse de bobeira. Como era lindo aquele sabiá que só morava no meu imagético?

Sei que o meu amor um tanto cresceu, queria provar meu amor, um eros que nem de Orfeu. Queria tocar uma serenata, mas meu dedos são lentos. Talvez pintar um quadro, mas, de criatividade, não sou sedento. O que fazer, se nem rima eu sei? Será que eu como eros, Thanatus encontrei?

Em busca de alimento, eu o vi.. ele voou. Como um cair de maçã, uma ideia me despertou. A árvore é inútil e o sabiá não precisa dela inteira, vou quebrar alguns galhos, destruir essa mangueira. Oh! Esse ninho é pequeno, não é digna de um cantor, vou construir uma casa a ele com bastante esplendor. Quando ele voltar, irá me agradecer, mais lindo será seu canto, mais radiante irei de viver.

Ao voltar, o sabiá chorou, triste ele voou e nunca mais voltou. Por três dias eu me trancafiei, tentando entender no que de errado tinha o presente que dei. Gritei:

"Por que, sabiá? Por que me abandonou? Todo amor que dei foi nada? Recebo só esse angustioso terror?"

Assim, ele surgiu e respondeu:

"Não foi amor que me deu, isso é longe de amar. Destruiu o meu refúgio, construiu uma bela cadeia só para me comprar. Meu ninho era tudo o que eu tinha e você destruiu, como te amar quando o egoísmo foi tudo que seguiu? O amor é só o de belo, não a feiura, tudo isso foi prisão. Pura penúria."